24.24
Resenhei “Os bastidores”, de Martin Amis, pro caderno Pensar do Estado de Minas. Leia AQUI.
::: Quando eu era moleque e queria me tornar cineasta, a minha rotina era ver filmes e ler sobre filmes. Não era fácil encontrar bons livros sobre cinema no interior de Goiás (ainda que Silvânia tenha uma biblioteca pública muito boa, como sempre faço questão de ressaltar). Assim, eu dava um jeito de ir a Goiânia de vez em quando. Via algum filme no Cine Ouro ou no Ritz e depois circulava pelo Centro, rua 4 acima e abaixo, entrando e saindo dos sebos.
::: Um livro que comprei e li naquela época foi “Esculpir o tempo”, de Andrei Tarkovski (trad.: Jefferson Luiz Camargo, ed. Martins Fontes). Mesmo aos 16 anos, eu discordava de muita coisa que o cineasta russo afirma ali. Não conseguia formular de modo consequente essas discordâncias, mas li o troço de cabo a rabo, pensando: “Sério mesmo?”. Exemplo (p. 133-4): “A busca da perfeição leva um artista a fazer descobertas espirituais, e a empregar o máximo de esforço espiritual. A aspiração ao absoluto é a força que impele o desenvolvimento da humanidade. Para mim, a ideia do realismo na arte está ligada a essa força. A arte é realista quando se empenha em expressar um ideal ético. O realismo é aspiração à verdade, e a verdade sempre é bela. Neste ponto, o estético e o ético coincidem”. Que amontoado inacreditável de estrume. Mas, beleza, Andrei. Sabe quando o estético e o ético coincidiram na história do cinema? Nos documentários que Leni Riefenstahl realizou na Alemanha dos anos 1930.
::: Tarkovski é um diretor cujos filmes (salvo por duas exceções) passaram a me interessar e agradar cada vez menos com o passar dos anos. Ainda gosto de “Stalker” e “Solaris”, mas acho a lenga-lenga de “Nostalgia” e “O sacrifício” tola e sentimentalista. “O espelho” tem belos momentos, mas é estruturalmente tão desastrado que não consigo apreciá-lo por inteiro. E é claro que, enquanto “resposta filosófica” a “2001: uma odisseia no espaço”, “Solaris” fracassa retumbantemente, pois um crente miserável que “aspira ao absoluto” é incapaz de assimilar a martelada nietzschiana. A imagem final do feto Übermensch em “2001” é uma mijada e tanto em nossa espécie. Vai por mim: aqueles olhões não nos incluem. Somos bestas em extinção, e já vamos tarde.
::: “Solaris” também é inferior ao seu original literário, o romance homônimo de Stanislaw Lem, da mesma forma como “Stalker” não transmite o horror e o vazio existenciais de “Piquenique na estrada”, dos Strugátski, com seus “deuses” ausentes e mortos egressos das covas. Ironicamente, a noção de que alienígenas tecnologicamente avançados que, visitando a Terra, não prestariam atenção nos humanos, da mesma forma como os humanos não prestam muita atenção nos insetos ao fazer um piquenique, parece-me muito mais próxima do humor sombrio e adorável de Kubrick. Aliás, outro problema gravíssimo, Tarkovski é totalmente desprovido de senso de humor. Não consigo pensar em nenhum grande artista desprovido de senso de humor. A seriedade excessiva anda de mãos dadas com a autoimportância e é uma característica muito comum entre os medíocres, limitados e pouco imaginativos (vide a literatura brasileira contemporânea: para cada Pellizzari ou Sarmento, há uma rataria de Hatoums).
::: Em seus piores momentos, Tarkovski procura escamotear suas limitações investindo em planos e composições muito bonitos, até engenhosos, mas é aquela história: se os elementos constituintes (desde o roteiro) são problemáticos, as imagens resultam esvaziadas. É por isso que eu sempre gargalho ao ver Erland Josephson correndo diante da casa incendiada em “O sacrifício”. O filme é tão canhestro que torna o apocalipse e sua eventual interdição desinteressantes — era melhor que tudo tivesse ido mesmo pelos ares, nem que fosse para calar a boca dos personagens, gente chata dos infernos. A trepada com a “bruxa” também é um lance constrangedor. No Evangelho segundo Tarkovski, para salvar o mundo, é preciso comer a empregada.
::: Em “Esculpir o tempo”, Tarkovski afirma o cinema como arte autônoma. Uau, certo? Mas, quanto a isso, estou com Kubrick, para quem o único elemento cinematográfico verdadeiramente original é a montagem (todos os outros elementos, do roteiro à atuação, passando pela fotografia, são obviamente “herdados” de outras artes etc. e tal). Tarkovski escreve que nem toda prosa “pode ser transferida para a tela”, pois há obras que “possuem grande unidade no que diz respeito aos elementos que as constituem”, “obras-primas” infilmáveis, pois filmá-las “só pode ocorrer a alguém que (...) sinta um grande desprezo pelo cinema e pela prosa de boa qualidade”. Que bobagem monumental. Kubrick, de novo: se pode ser escrito, pode ser filmado.
::: Tarkovski parece ter em mente uma espécie de adaptação meio literal, uma mera transposição, na qual o cinema ocuparia uma posição subalterna relativamente ao material de origem. Mas esse tipo de abordagem raramente funciona. Qual é a melhor adaptação d’“O coração das trevas”, de Joseph Conrad? O longa homônimo (e “fidelíssimo” à obra literária) de Nicolas Roeg ou “Apocalypse now”? Das obviedades: o bom roteirista engole e digere a obra original para regurgitar outra coisa; a fidelidade se dá ao espírito, não à letra do original; o trabalho óbvio é encontrar respostas audiovisuais para questões literárias; etc.
::: Um livro muito bom sobre um processo extremamente bem-sucedido de adaptação é “Eyes wide open”, de Frederic Raphael (saiu no Brasil décadas atrás como “De olhos bem abertos”, trad.: Lidia Cavalcante-Luther, ed. Geração Editorial). Ao adaptar “Breve romance de sonho”, de Arthur Schnitzler, Raphael criou um personagem — interpretado no filme por Sidney Pollack — que amarra toda a história. Kubrick resistiu à ideia, mas não havia outra solução. “De olhos bem fechados” é fascinante também pelo que tem de inadvertido: ao recriar ruas de Nova York em estúdio, Kubrick contaminou o filme de uma artificialidade onírica bastante fiel ao romance de Schnitzler (mas que, em suas conversas com Raphael, dizia querer evitar).
::: Quando eu era moleque e queria me tornar cineasta, eu me sentia muito atraído por filmes estruturalmente esquisitos. Eu adorava — ainda adoro, é o meu predileto do diretor (não o melhor, mas o meu predileto) — “Nascido para matar”, por exemplo. Sim, os dois atos parecem dois filmes distintos. Mas, caramba, é um filme de guerra, e um filme de guerra conflagrado desde os seus alicerces narrativos, um filme de guerra em conflito consigo mesmo. Há, também, o distanciamento que evita quaisquer “posicionamentos”. Não há nada mais empobrecedor do que telegrafar uma “mensagem”. A ruindade de “Platoon” reside (também) nisso. Mesmo em seu grande filme antibelicista, “Glória feita de sangue”, Kubrick não se exime de sacrificar os peões. Não há alívio, não há rota de fuga. O epílogo emocionante, quando a jovem alemã (futura sra. Kubrick) canta para os soldados, não passa de um intervalo entre dois círculos infernais.
::: Em “O sacrifício”, Tarkovski teve de filmar duas vezes o plano-sequência da casa incendiada. Tudo porque — ignorando os protestos do calejadíssimo fotógrafo Sven Nykvist — usou apenas uma câmera na primeira tentativa (é bastante provável que tivesse alguma justificativa “espiritual” para cometer esse erro de principiante). O equipamento travou e a coisa foi pelo cano. Tiveram de interromper as filmagens, arranjar uma grana extra, reconstruir a casa e filmar tudo de novo. Na segunda tentativa, Tarkovski aceitou que duas câmeras rodassem simultaneamente. Por que ele não deu ouvidos ao profissional? Em 1985, quando fizeram o filme, Nykvist tinha 40 anos de experiência como diretor de fotografia. Ele e Erland Josephson reinvestiram os próprios salários a fim de viabilizar a produção. Ou seja, com sua teimosia inexplicável, Tarkovski queimou dinheiro dos amigos ali, não de algum banqueiro ou produtor distante. Trelas.
Adriano Scandolara escreve sobre a chatice insuportável de boa parte da prosa brasileira contemporânea AQUI.
Terminei o mestrado e cogitei engatar o doutorado, mas o tema e a linha de pesquisa propostos pelo orientador não me interessaram. Agora, voltei às leituras e releituras, procurando por algo que valha a pena esmiuçar por quatro anos. Não vejo sentido em fazer uma coisa dessas por fazer. Para mim, o título é irrelevante e não significa nada. Só imbecis acham que o título tem importância por si só. Muitas das teses e dissertações que vejo por aí são grãos de areia em desertos de picaretagem. Claro, há quem precise do título por motivos profissionais e faça o possível em condições bem difíceis. Tive um colega na pós que morava no Norte de Minas, lecionava no Sul da Bahia e vinha para São Paulo toda semana para assistir às aulas. É possível escrever uma boa tese nessas condições? Duvido muito. As pessoas se viram como podem. Não julgo ninguém por isso. Julgo, sim, os idiotas que se arrogam uma importância que não têm, como o tradutor pateta que, diante de um comentário (não uma crítica) que fiz no finado Twitter acerca de um trabalho dele, saiu logo com a carteirada: “Está na minha tese de doutorado”. Como se isso resolvesse a questão. Bom, o papel e certos orientadores (também picaretas) aceitam qualquer porcaria. O fato de abordar algo em uma tese de doutorado não significa que esse algo tenha necessariamente qualquer mérito conceitual. Na melhor das hipóteses, o acadêmico está apenas chovendo no molhando ou, como diria o saudoso Giannotti, tricotando. Na pior, está vampirizando e descontextualizando noções que mal compreende e contribuindo para a perpetuação de mal-entendidos, apropriações indevidas e barbaridades interpretativas variadas. O suprarreferido pateta é um tradutor muito celebrado. Voltando à vaca fria, foi engraçado como o orientador, muito afável nos dois anos anteriores, simplesmente me cortou da vida dele quando falei que não seguiria pelo caminho sugerido. Bom, é a minha vida. Daqui a pouco vou completar 45 anos. Não quero chegar aos 50 sugando uma teta que me parece seca. Cogitei enviar um e-mail para meu ex-orientador dizendo que estou relendo Holzwege, mas não vejo sentido em ofender o homem. Ele sempre foi legal comigo.