Um tiro de pistola no meio de um concerto
Cronenberg
[Foto: Grace Ahlbom.]
Seu filme mais recente, The Shrouds, é sobre um viúvo, empreendedor de tecnologia, que inventa um dispositivo que possibilita aos enlutados assistirem ao vivo à decomposição dos corpos enterrados de seus entes queridos. Como você chegou a fazer esse filme?
Minha esposa morreu em 2017 após 43 anos [de casamento], e passei dois anos cuidando dela. Eu diria que todos os filmes são de certo modo autobiográficos. Eu tinha de lidar com um personagem que sofria com a perda da esposa. Tão logo você começa a escrever um roteiro, não é a vida; ele se torna ficção. Por baixo disso, ainda está tudo o que você sentia e o seu desejo de desemaranhar algumas emoções complexas (…), mas de uma forma ficcional, o que lhe dá a ilusão de ter algum tipo de controle.
NESTA ótima (embora curta) entrevista à W Magazine.
Spike
[Foto: Adrienne Raquel.]
Lembrando do seu primeiro Festival de Cannes em 1989 com ‘Faça a coisa certa’, o filme acabou perdendo a Palma de Ouro para ‘Sexo, mentiras e videotape’ e você ficou tão furioso com o presidente do júri, Wim Wenders, que disse ter um [bastão de beisebol da marca] Louisville Slugger com o nome dele. Vocês alguma vez conversaram sobre isso?
Eu nunca o encontrei na minha vida.
Mesmo?
Estou coescrevendo um livro com Jay Glennie, grande autor. Ele fez o livro sobre ‘O franco atirador’ e o livro sobre ‘Touro indomável’. Estamos escrevendo um livro sobre ‘Faça a coisa certa’. Será lançado no ano que vem. E eu estava vendo a coletiva de imprensa (…), a [minha] primeira coletiva em Cannes. E, veja, isso foi anos atrás. Mas o que me deixou furioso é que [Wenders] disse que Mookie não era um personagem heroico. E aí, com todo o respeito, mas compare com o James Spader em ‘Sexo, mentiras e videotape’. Então, isso me deixou fulo. E a Sally Field e o grande e saudoso Hector Babenco me contaram o que estava rolando no júri. A palavra vinha do presidente do júri, ‘Faça a coisa certa’ não pode vencer. Foi aí que eu fiquei furioso mesmo. Foi aí que dei aquela declaração, ‘Eu tenho um bastão Louisville Slugger’.
NESTA entrevista ao Hollywood Reporter.
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Para quem não se lembra ou não viu o filme de Steven Soderbergh, o personagem de James Spader em “Sexo, mentiras e videotape” é um sujeito impotente (está tudo na cabecinha, bebê) que grava depoimentos de mulheres falando sobre sexo e depois se masturba (de pau mole, presumo) assistindo aos vídeos. A certa altura, “curado” da impotência, ele trepa com a esposa do (ex-)melhor amigo (um cuzão maravilhosamente interpretado por Peter Gallagher, talvez o único personagem interessante em todo o filme). Spader e a tal mulher (Andie McDowell, chatíssima) ficam juntos no final, é claro.
Wim Wenders bateu o pé para premiar essa punheta de pau mole aí, em detrimento de um dos filmes mais agressivos e originais do final do século XX. E entre os longas concorrentes também estavam “Black rain”, de Shohei Imamura, “Jesus de Montreal”, de Denys Arcand, “Trem mistério”, de Jim Jarmusch, e “Vida cigana”, de Emir Kusturica. Sério, bicho.
Markson e a ausência de teto
“Política numa obra literária é como um tiro de pistola no meio de um concerto.”
“Wallace Stevens disse a Robert Frost que os poemas dele eram muito frequentemente sobre coisas. Frost disse a Stevens que os dele eram sobre bricabraque.”
“Ninguém pode roubar as minhas palavras. Estas foram as palavras de Teógnis.”
“Simônides concluiu que era melhor ser rico do que sábio. Desde então, notei que os sábios passam a maior parte do tempo na soleira dos ricos.”
“Uma plateia de três mil pessoas aplaudiu de pé Akhmátova após uma leitura em Moscou, em 1944. Ao ouvir a respeito, Stálin: Quem organizou essa reação?”
“Os poemas de Catulo estiveram perdidos por um milênio. Diz a tradição que o único manuscrito descoberto em Verona no século XIV era usado como rolha de barril.”
“Plínio, o Velho recomendava atividade sexual como remédio para vista ruim. E para a rouquidão.”
“Hemingway: Só liguei para contar que recebi aquela coisa. General Buck Lanham: Aquela coisa? Que coisa? Hemingway: Aquela coisa sueca, sabe?”
“Aquela coisa sueca. O Prêmio Nobel de Traseiros de Cavalos.”
“Isaac Bábel desapareceu num dos expurgos de Stálin. Não se sabe absolutamente nada sobre a sua morte. Em contrapartida, ordens supostamente dadas por Stálin com relação a Pasternak: Não toquem no morador das nuvens.”
“A definição de escritor para Thomas Mann. Alguém para quem escrever é mais difícil do que para as outras pessoas.”
“Lucia Joyce, internada [numa clínica psiquiátrica], ao saber da morte do pai: O que ele está fazendo debaixo da terra, aquele idiota?”
“Eu não poderia fazer isso com ele. Disse Nora, respondendo à sugestão de que Joyce tivesse um funeral católico.”
— DAVID MARKSON (1927-2010), em “Reader’s block” (Dalkey Archive Press, 1996).
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“Reader’s block” é o primeiro livro do “Notecard Quartet”, seguido por “This is not a novel” (2001), “Vanishing point” (2004, meu predileto) e “The last novel” (2007).
Markson define assim seu experimento em “Reader’s”: “(…) um romance de referência e alusão intelectuais, por assim dizer, sem muito do romance”; “Não linear. Descontínuo. Espécie de colagem. Uma montagem”. Em cada um dos livros, há um personagem (chamado de Leitor, Autor etc.), mas toda a ação se dá na cabeça desse personagem, que passeia por lembranças e restos de coisas que leu e releu no decorrer da vida. Ele circula por essa cidade interior povoada por livros e leituras e expressa fragmentos de livros e leituras.
Penso em um leitor/autor à beira da morte. E é como se, na fase final da vida, Markson descrevesse a morte de um leitor/autor para reviver o romance em uma nova forma.
Eis uma página típica do “Quarteto”:
Acho esse arranjo tão simples quanto efetivo. Visualmente, olhando para a disposição das palavras nas páginas, é algo que (me) emociona sei lá por quê, não obstante a antecipação de uma “final bleak contemplation amid the disarray”. Em Markson, devo dizer, não vejo sinal da propalada & papagaiada mORtE dO RoMAnCe. O que eu (entre)vejo é a morte do (ou de um) (de um tipo de?) leitor. Mas, ali, dada a sua forma final, pronta, o romance sobrevive inclusive à morte do leitor.
Claro que, visualmente, Markson não chega (nem pretende chegar) à maluquice convoluta de Arno Schmidt em “Zettels Traum”, mas tem algo da beleza sossegada (e que contradiz e ao mesmo tempo sublinha a violência do que é narrado) de “The dying grass”, de William T. Vollmann, onde as palavras parecem dançar feito a relva com o vento.
Primeiro, Vollmann:
Agora, Schmidt (na tradução para o inglês de John E. Woods lançada pela Dalkey, “Bottom’s dream”):
Muitos anos atrás, ao comentar com um conhecido que cotejava as traduções brasileiras então disponíveis do “Ulysses”, ouvi: “A vanguarda bateu no teto”. Não por acaso, esse conhecido exercitava uma literatura convencional, morna, sem quaisquer ousadias, de interesse nulo para mim. E é por isso que eu disse a ele na época e repito agora: NÃO EXISTE TETO.
Teto? Que teto, porra?
Mandar fazer uma camiseta: Não existe teto.
Não, não existe teto. É isso. Um abraço